• Quem tem medo de conchinha?
  • Quem tem medo de conchinha?


    Nada me acalenta tanto quanto o abraço dele no abrigo que a gente chama de nosso. A certeza de que no fim do dia aquele calorzinho que só a intimidade proporciona vai aconchegar nossos lençóis e formar um casulo pronto para abraçar todas as vitórias, os fracassos, as indecisões, todos os pormenores de um dia a dia longe de casa, é o que alimenta minha vontade de voltar. É entre quatro paredes que nossa reciprocidade fica realmente evidente. Porque o pé dele procura pelo meu não importa o calor escaldante que esteja fazendo do lado de fora da janela. Do lado de dentro, é sempre tempo de troca e de colheita. A conchinha pode dizer muito mais sobre um relacionamento do que o simples ato reflexo rotineiro de se preparar para dormir a dois. O último abraço que o corpo se recorda antes de mergulhar fundo no país dos sonhos é um termômetro bastante preciso da identidade de uma parceria. O (des)encaixe dos passos, das vontades, da vida, grande parte das vezes, transparecem na cama. Salvo exceções, quanto mais distantes se encontram os suspiros, menor é a sintonia do casal naquele exato momento do relacionamento.

    Os motivos podem ser vários. Um deles me lembra a sabedoria sagrada da minha mãe, que sempre diz para nunca ir para cama sem finalizar uma discussão. Seus quase 30 anos de casada a ensinaram arduamente que o descompasso de escolhas reflete em dois travesseiros separados, um sono nada tranquilo e um intervalo enorme entre a sua entrega e a reciprocidade do outro. A conchinha representa a permanência, o merecimento, a segurança e acima de tudo, a confiança. Um relacionamento com arestas bem aparadas amplia, e muito, a vontade de terminar e começar o dia no conforto de uma certeza. Caso contrário, a proximidade se torna sufocante e o resultado é nada mais, nada menos, do que um afeto fatigado. Uma aliança marcada por um muro alto e frio, erguido exatamente no meio das cobertas. Mágoa que se deita despida de indiferença de um lado da cama, acorda vestida de tormenta do outro. Por isso é essencial que todos os problemas passíveis de serem resolvidos a partir de uma boa conversa, sejam sanados ali, na sala de estar. Quarto é local de repouso do livre-arbítrio, se a gente quisesse abrigar uma distância fazia na rua mesmo que era pra não ter o trabalho de arrumar a bagunça da casa e do coração depois.

    Outro porém é que se agasalhar na fragilidade do parceiro dá medo demais. Entregar-se de corpo e alma a um abraço recheado de individualidades, receios e anseios antes de dormir, demanda duas coisas que poucos têm: coragem e desapego. Coragem, para permitir ganhar e perder um pedaço de si dentro de um abrigo de carências. Desapego, para entender o espaço de cada abraço, pessoa, sentimento, dentro da vivência da gente e ainda assim aproveitar o momento da forma mais exímia possível. A conchinha é um ato de fé, o mais sublime momento de troca. Mais do que amor, exige uma dedicação ímpar para garantir que o encaixe seja perfeito. O braço fica dormente, a tensão muscular fica reprimida em uma porção muito pequena do corpo, um amontoado de fios de cabelo dificulta a respiração, mas nada paga o preço de se estar bem no meio de um dos enlaces mais delicados de se ver e sentir. Se aninhar na essência, no aconchego, no amparo de quem a gente escolheu para dividir a travessia é também abrir a porta do coração para um monte de sentimento bonito entrar e fazer esconderijo. Quem tem medo de conchinha, bem no fundo, tem medo é dele mesmo. Controlar o amor do lado de fora da porta já é particularmente difícil, imagina dentro de um labirinto de carinho. Só aceita de coração aberto um entrelaçar de pernas no meio da noite quem se concede o direito de ser feliz, mesmo que seja pelo breve espaço de uns instantes.

    Porque eu gosto é de gente que abraça nossa vivência e faz morada no cantinho mais esquecido do quarto: nossa solidão. Melhor ainda é quem não dá a mínima chance desse sentimento inoportuno se manifestar, pois já corta logo a onda do intruso com uma conchinha dessas serenas que diz em alto e bom tom: “eu estou aqui”. Nada como um sentimento sincero te enfeitando de sorrisos depois de uma discussão, de um momento difícil ou simplesmente de um vinho ou dois, para restaurar toda a fé na humanidade e no amor. Eu sempre digo que amor é coisa de gente corajosa. Amor é coisa de dois. Nada como equacionar esse sentimento em um casulo de afeto e constância, por uma noite, duas ou a vida inteira e liberar todas as amarras daquilo que a gente carinhosamente chama de razão. Sufocante mesmo é dispensar uma conchinha gostosa por puro medo de despir sua alma de carências e embargar uma possível solidão. Ainda bem que a disposição é um presente recheado de permanências. É, ainda bem.


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